Informativo ADCE MG – O dirigente cristão de empresa à luz da Doutrina Social da Igreja

O dirigente cristão de empresa  à luz da Doutrina Social da Igreja

 

Frater Henrique Cristiano José Matos, cmm – por ocasião de sua participação no 41º Encontro de Reflexão para Dirigentes de Empresas da ADCE MG realizado em 27 de setembro de 2014

 

1.     Breve análise sociopolítica do atual momento histórico

 

O Concílio Vaticano II (1962-1965) no último Documento: a  Constituição Pastoral Gaudium et Spes (7-12-1965), abordou, de forma positiva e estimulante, o ‘progresso humano’, decorrente dos incríveis avanços da ciência e da técnica. Hoje, “o homem alargou, e alarga continuamente, o seu domínio sobre quase toda a natureza; primeiro com o auxílio de maiores recursos do variado comércio entre as nações, a família humana pouco a pouco se reconhece e se constitui como comunidade do mundo inteiro. Por isso, muitos bens que o homem aguardava antigamente sobretudo de forças superiores, hoje já os consegue pelo trabalho próprio” (n.33).

 

O otimismo que reinava naqueles anos não se consolidaria em decênios posteriores. O desmoronamento do socialismo real, cujo símbolo é a Queda do Muro de Berlim (1989), não trouxe uma organização mundial mais igualitária e justa. O capitalismo, cada vez mais impositivo e implacável nos seus princípios teóricos, fez surgir uma realidade altamente questionável sob o ponto de vista ético. Paulatinamente, apareceu um mercado globalizado, completamente dominado pelo capital financeiro. Não cabe a nós fazer aqui uma análise técnica desse fenômeno. Apenas apontamos algumas de suas mais relevantes características.

 

Encontramo-nos envolvidos por uma ideologia de mercado notoriamente pragmática, competitiva, consumista e individualista. Lucro e especulação financeira funcionam  como imperativos inquestionáveis. Divinizam-se eficácia e produtividade, fazendo-se deles parâmetros quase absolutos, em detrimento da pessoa humana e dos direitos inalienáveis da Natureza e outros seres vivos. A tirania do dinheiro reina por toda parte. Temos aqui uma nova ideologia sustentada pelos meios de comunicação, que a divulgam e propõem como a chave da felicidade, conforto e ‘qualidade de vida’. O fetichismo monetário e a ditadura capitalista perderam seu ‘rosto humano’, excluindo sistematicamente os que rejeitam seu ‘pensamento único’. Verificamos uma grave carência antropológica no sistema dominante que, na realidade, reduz o ser humano a apenas uma de suas necessidades básicas: o consumo. No mundo em que vivemos instalou-se uma feroz concorrência pela disputa de mercados “não tanto pelo aumento do número de consumidores, como na onda do ‘consumo de massa’, mas para vender muito para os poucos que podem comprar.

 

Nessa mentalidade, amplamente divulgada, a qualidade de vida é confundida com o nível de consumo e com a quantidade de coisas que alguém possui. O Papa Francisco o disse, sem rodeios: “Na cultura dominante ocupa o primeiro lugar aquilo que é exterior, imediato, visível, rápido, superficial, provisório. O real cede lugar à aparência. Em muitos países, a globalização comportou uma acelerada deterioração das raízes culturais com a invasão de tendências pertencentes a outras culturas, economicamente desenvolvidas mas eticamente debilitadas” (Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, n.62). É fácil perceber, no dia a dia, que para muitos de nossos contemporâneos o TER passa a determinar o SER, ou como diz o povo: ‘Vale quem tem!’ Prevalecem os bens descartáveis, supérfluos, apenas da moda. Neste caso, não ‘ter’ não significa ser privado de algo necessário, mas padecer uma ‘humilhação social’.

 

Uma sociedade que valoriza mais o ter que o ser, cujas leis protegem muito mais o patrimônio que a vida e onde os direitos humanos são negados no trabalho, na rua, na escola, em casa, nas relações mais simples, é uma sociedade que está desenvolvendo dentro de si o germe da violência. Ela coloca as premissas não só para o desencadeamento da violência criminal, mas também para uma dimensão mais ampla da violência que é o desprezo pelo homem e por tudo que é humano. Surge, assim, a ‘violência fundamental’: todas as formas de violação do corpo, da consciência e da vida; enfim, o conjunto de violações de direitos humanos.

 

2.     O perigo de uma ‘globalização da indiferença’

 

Inegavelmente, vivemos numa mudança de época. Os fatos são mais do que evidentes. A virada histórica pode ser constatada em muitos fenômenos que, ao mesmo tempo, suscitam grandes esperanças e causam perplexidades ou medo. Uma de suas manifestações mais marcantes é, sem dúvida, a mundialização do mercado e a globalização da cultura ocidental. Um número expressivo de nossos contemporâneos encontra-se desorientado e sem segurança. Assistimos a rupturas que condicionam profundamente as relações de comunhão com os outros, com Deus e com a Criação, gerando agressões que comprometem o equilíbrio do ser humano e a compreensão do sentido existencial.

 

O atual clima cultural mostra uma sociedade ‘em crise de valores’. Nela o caos, a incerteza e insegurança aparecem como pesadelos de beco sem saída. Horizontes se fecham e esperanças são frustradas. Reina na convivência um individualismo extremo, expressão eloquente da organização capitalista, legitimada por uma ideologia neoliberal, amplamente propagada pela mídia. Diluem-se os valores humanos e relações solidárias são destruídas. O Papa Francisco fala de uma ‘globalização da indiferença’. “Quase sem nos dar conta, tornamo-nos incapazes de nos compadecer ao ouvir os clamores alheios, já não choramos à vista do drama dos outros, nem nos interessamos por cuidar deles, como se tudo fosse uma responsabilidade de outrem, que não nos incumbe. A cultura do bem-estar anestesia-nos, a ponto de perdermos a serenidade se o mercado oferece algo que ainda não compramos, enquanto todas estas vidas ceifadas por falta de possibilidades nos parecem um mero espetáculo que não nos incomoda de forma alguma” (Evangelii Gaudium [EG], op.cit, n.175-176).

 

Em sua homilia na Ilha de Lampedusa (8-7-2013), indo ao encontro de milhares de refugiados chegados da África, o Papa comentou: “Todos nós respondemos assim: não sou eu, não tenho nada a ver com isso; serão outros, eu não certamente. Mas Deus pergunta a cada um de nós: ‘Onde está o sangue do teu irmão que clama até mim?’ Hoje ninguém no mundo se sente responsável por isso; perdemos o sentimento de responsabilidade fraterna; caímos na atitude hipócrita do sacerdote e do levita de que falava Jesus na parábola do Bom Samaritano: ao vermos o irmão quase morto na beira da estrada, talvez pensamos ‘coitado’ e prosseguimos o nosso caminho; não é dever nosso; e isto basta para nos tranquilizarmos, para sentirmos a consciência em ordem. A cultura do bem-estar, que nos leva a pensar em nós mesmos, torna-nos insensíveis aos gritos dos outros, faz-nos viver como se fôssemos bolhas de sabão: estas são bonitas, mas não são nada, são pura ilusão do fútil, do provisório. Esta cultura do bem-estar leva à indiferença a respeito dos outros; antes, leva à globalização da indiferença. Neste mundo da globalização, caímos na globalização da indiferença” (Texto-base da Campanha da Fraternidade de 2014, p.103).

 

O egocentrismo doentio — que invadiu nossa cultura, estimulando, sem limites, o consumismo e o prazer individual — ridiculariza a ética e considera ‘ultrapassados’ valores que se referem ao bem comum e a realidades espirituais. Para a ética “olha-se habitualmente com certo desprezo sarcástico; é considerada contraproducente, demasiado humana, porque relativiza o dinheiro e o poder. É sentida como uma ameaça, porque condena a manipulação e degradação da pessoa. Em última instância, a ética leva a Deus que espera uma resposta comprometida, que está fora das categorias do mercado. Para estas, se absolutizadas, Deus é incontrolável, não manipulável e até mesmo perigoso, na medida em que chama o ser humano à sua plena realização e à independência de qualquer tipo de escravidão” (EG, n.57).

Acontece, porém, que numa vida interior atrofiada, fechada em nossos próprios interesses, “deixa de haver espaço para os outros, já não entram os pobres, já não ouvimos a voz de Deus, já não gozamos da doce alegria do seu amor, nem fervilha o entusiasmo de fazer o bem. Este é um risco, certo e permanente, que correm também os crentes. Muitos caem nele, transformando-se em pessoas ressentidas, queixosas, sem vida. Esta não é a escolha de uma vida digna e plena, este não é o desígnio que Deus tem para nós, esta não é a vida no espírito que jorra do coração de Cristo ressuscitado” (EG, n.2).

 

3.     Síntese da Doutrina Social da Igreja (DSI)

 

3.1.         Conceito

A ‘doutrina social’ faz parte da missão evangelizadora da Igreja, sendo um aspecto fundamental de seu múnus profético.  O Reino de Deus, do qual a Igreja é sinal e instrumento, abrange o homem todo e toda a realidade em que se encontra. Assim, liberdade e justiça, à luz da Verdade, são as raízes que alimentam a grande tradição social que Jesus veio assumir e completar com sua mensagem de Amor.

A DSI toma forma oficial com a publicação da Encíclica do Papa Leão XIII, Rerum Novarum, 15 de maio de 1891, embora tenha um lastro escriturístico, patrístico, teológico e vivencial muito mais antigo. Ela oferece aos cristãos ‘referenciais indispensáveis’ para compreender as variadas situações e os diversos problemas da sociedade à luz do Evangelho. Nesses ‘ensinamentos sociais’ há elementos de validade permanente, que se fundam na antropologia nascida da própria mensagem de Cristo como também nos valores perenes da ética cristã. Há, igualmente, elementos, contingentes, portanto mutáveis, pelo fato de serem ligados a condições específicas de um determinado tempo, cultura ou país.

A DSI é, antes de tudo, uma orientação para a ação e, por isso, mais de caráter pastoral do que doutrinário. Ao longo desses 123 anos ela se fez mais evangélica e também mais realista. Houve notável evolução na aplicação de princípios básicos, como, por exemplo, nos conceitos de propriedade privada, trabalho e salário, participação do operário na empresa, posição frente a ideologias e sistemas econômicos dominantes, luta de classes, etc.

 

 

3.2.         A Encíclica Rerum Novarum (15-5-1891) de Leão XIII

 

3.2.1.   Contexto histórico

O Documento sobre a “Condição dos Operários” de Leão XIII é, na realidade, um ‘grito de indignação ética’ contra os excessos do capitalismo selvagem. A consciência cristã, mediante a voz do Romano Pontífice, denuncia abertamente a inaceitável iniquidade da política econômica do laissez faire, laissez aller,mas aponta também os perigos de um socialismo coletivista.

A Revolução Industrial que, em fins do século XIX chegou a seu auge, pusera cruelmente a ‘questão social’ de um proletariado explorado e marginalizado por um sistema de organização econômica que produzira um ‘novo pobre’, ou seja um ‘empobrecido’, alguém feito pobre. João XXIII (1958-1963), na sua Encíclica Mater et Magistra (15-5-1961, data que comemora o septuagésimo aniversário do documento leonino) descreveu bem a situação ao dizer: “Os tempos em que Leão XIII falou era de transformações radicais, de fortes contrastes e amargas rebeliões… O conceito do mundo econômico, então mais difundido e posto em prática, era um conceito naturalista, negador de toda relação entre moral e economia. O motivo único da ação econômica era o interesse individual. Lei suprema e reguladora das relações entre os fatores econômicos era a livre concorrência, sem limites…” Num mundo, assim concebido, a lei do mais forte sempre prevalecia, acumulando-se as riquezas nas mãos de poucos, tendo como imediata consequência a crescente e vergonhosa marginalização da classe operária!

Hoje dificilmente podemos ter ideia do enorme impacto causada pela Encíclica Rerum Novarum (RN). Até sua publicação, em 15 de maio de 1891, documentos oficiais dos Papas ocupavam-se, quase exclusivamente, com assuntos internos da religião, da doutrina ou disciplina eclesiástica. Incursões no campo social, por parte do Magistério Romano, eram indiretas e episódicas. Temos que ter em mente esse pano de fundo para entender a recepção da Encíclica no interior da Igreja. De fato, pegou muitos católicos de surpresa e causou constrangimento na opinião pública. As reações que provocou são sintomáticas: para alguns fiéis (a minoria, na verdade) confirmou seus pontos de vista, dando respaldo a seu engajamento social; para outros (a grande maioria) deu margem a ferrenhas críticas e veladas oposições. Ao terminar a ‘reza do terço’, os mais fervorosos devotos  formulavam uma prece especial ‘pela conversão do Papa’ que tanto se desviara de sua missão ‘espiritual’! Perguntavam uns aos outros: como um Chefe da Igreja tem a ousadia de fazer pronunciamentos sobre salários de trabalhadores braçais e falar sobre sindicalismo!

Situando o documento leonino no seu contexto histórico podemos ainda observar sua face progressista  ao reconhecer que o trabalho humano é a única fonte de onde procede a riqueza das Nações. Logo, o trabalho deve ser recompensado e, para tanto, nem sempre o ‘livre’ contrato entre o forte e o fraco é garantia de justiça. Efetivamente, os sindicatos (a grande novidade da Encíclica) devem ter assegurado o seu papel de arbítrio,  poder que (embora com certa relutância e reserva) é visto pelo Papa como legítimo e até necessário.

 

3.2.2.   Precursores da ‘Ação Social Católica”

(ver nosso estudo: “Leão XIII e a Questão Social”. In: História do Cristianismo — Estudos e Documentos, vol. IV, HI-83. Belo Horizonte, 1990).

 

Logicamente a Encíclica Rerum Novarum não caiu pronta do céu! Houve muitas pessoas, grupos e organizações, particularmente provenientes do laicato católico, que preparam o pronunciamento oficial do Pontífice. Elencamos aqui apenas alguns de seus mais destacados representantes.

 

— Na Alemanha, temos as figuras de Wilhelm Emmanuel Von Ketteler (1811-1877), bispo de Mogúncia que, em 1864, lançou sua famosa obra A questão operária e o cristianismo, na qual defendeu, ardorosamente, a importância do movimento sindical. Ao lado dele está a figura do Padre Adolph Kolping (1813-1865), pioneiro das Associações Católicas de Operários, obra que teve repercussão significativa também fora de sua pátria.

— Na Áustria, está Karl Von Vogelsang (1818-1890), leigo, nascido na Alemanha, que se tornou um dos líderes do movimento social austríaco.  Fundou a Revista mensal para a reforma social cristã, em 1878.

— Na Suiça, Dom Gaspard Mermillod (1824-1892), bispo de Lausanne-Genebra. Criou, em 1855, a conhecida e influente União Católica de Estudos Sociais (conhecida como ‘Union de Fribourg’).

— Na Itália, surgem dois protagonistas de ação social: Padre Luigi Taparelli d’Azeglia, SJ (1793-1862), cofundador da revista jesuítica La Civiltà Cattolica (1850). Seus numerosos artigos e estudos refletem uma arguta consciência da questão social de seus dias. Também na Itália o leigo (hoje Beato) Giuseppe Toniolo (1845-1918), que, em 1889, criou a União católica para Estudos Sociais na Itália. Lutou energicamente pelo reconhecimento dos valores éticos na atividade econômica.

— Na França, as notáveis figuras de Albert de Mum (1841-1913), criador dos Círculos Operários, e Léon Harmel (1829-1915), empresário católico exemplar, promotor dos Círculos Cristãos de Estudo Social, nos quais os próprios operários debatiam abertamente seus problemas. Harmel dá apoio e incentiva o que hoje chamaríamos de ‘sindicato’, fazendo os empregados participar diretamente da gerência de suas empresas. Não podemos esquecer a pessoa ímpar de Frederico Ozanam (1813-1853), professor universitário e fundador da ‘Sociedade de São Vicente de Paulo’ (1833), associação de leigos voltada para os mais necessitados da sociedade, dando grande valor ao contato pessoal de seus membros com a ‘miséria gritante’ de tantos pobres que, nos seus dias, perambulavam na capital francesa.

(Veja nosso amplo estudo: “Frederico Ozanam: o testemunho de um leigo engajado e autêntico cristão”. In: História do Cristianismo — Estudos e Documentos, vol. IV, HI-93, Belo Horizonte, 1990).

— Na Inglaterra: Dom Henry Edward Manning (1808-1892), Cardeal e Arcebispo de Westminster, conhecido pelo seu trabalho em favor dos pobres de Londres e pelo apoio dado aos estivadores da capital inglesa por ocasião de uma greve geral da categoria (1889). Na América do Norte encontramos o Arcebispo de Baltimore, Dom James Gibbons (1834-1921), criado Cardeal em 1886, empenhado na organização dos operários tendo em vista a humanização do trabalho.

— No Brasil merece destaque a figura de Carlos Alberto de Menezes (1855-1904), o ‘Léon Harmel brasileiro’, com importantes promoções sociais em Pernambuco. Na direção da Fábrica de Tecidos de Camaragibe garantiu aos operários uma tratamento mais humano e cristão, completa novidade na época. Em 1900 fundou a ‘Cooperação Operária’ que promovia toda sorte de benefício moral, material, espiritual e intelectual para os trabalhadores e suas famílias. Contribuiu, assim, para educar o operário pela prática da associação, desenvolvendo o espírito de união, solidariedade e fraternidade. (ver: MENEZES, Carlos Alberto de. Ação Social Católica no Brasil: corporativismo e sindicalismo. São Paulo: Loyola/CEPEHIB, 1989.  Introdução e notas: Padre Fernando Azevedo, SJ).

 

3.3.         Os quatro enfoques centrais da Rerum Novarum

(ver: MATOS, Henrique Cristiano José. Leão XIII e a Questão Social. In: Caminhando pela História da Igreja, vol. III. Belo Horizonte: O Lutador, 1996, Doc. 102, p. 114-129).

 

A Encíclica de Leão XIII sobre “as condições dos operários” recolhe o que havia de melhor e mais maduro em quase 50 anos de estudo e discussão entre os católicos sociais. Superou definitivamente os ‘dogmas’ da ideologia do capitalismo liberal, reconhecendo como legítimas muitas posições avançadas no campo social. Apesar de a leitura da Encíclica, hoje, deixar em nós uma certa decepção pela linguagem um tanto arcaica e em tom paternalista, na época de sua publicação causou grande impacto nos meios católicos tradicionais.

O ensinamento de Leão XIII pode ser sintetizada em quatro pontos básicos:

— É retomada o princípio do direito natural da propriedade privada, realçando, no entanto, sua função social.

— Ao Estado cabe promover o bem comum, público e privado, superando-se, assim, o absentismo estatal da corrente liberal. Igualmente são colocados os limites da intervenção do Estado que, por princípio, possui um caráter de suplência.

— Aos operários são lembrados seus deveres para com os patrões, sendo estes obrigados a proporcionar  um salário justo que lhes assegure uma vida humana digna.

— É condenada a luta de classe, mas reconhecido o direito do operário de se inscrever em associações profissionais (‘sindicatos’) para a defesa de seus direitos.

Indubitavelmente, o reconhecimento do movimento sindicalista constitui o elemento realmente novo no documento leonino, embora tenha sido introduzido quase furtivamente e in extremis.  Até à última hora permaneciam hesitações sobre sua conveniência!

 

3.4.         Itinerário documental pontifício da DSI

(ver: MATOS, Henrique Cristiano José. Da Rerum Novarum (1891) a Centesimus Annus (1991): 100 anos de evolução da Doutrina Social da Igreja — uma abordagem histórica. REB, Petrópolis, v.51, n.204, p.771-802, dez. 1991).

 

1.     1891 (15 de maio): Encíclica Rerum Novarum, do Papa Leão XIII (1873-1903). Tema central: ‘A questão operária’.

— Documento-base de toda a DSI. Pela primeira vez o magistério pontifício se pronunciou, de forma oficial e orgânica, sobre a organização da sociedade.

— Enuncleou os princípios fundamentais da DSI, que seriam sucessivamente retomados, aprofundados e aplicados em outros documentos da Santa Sé.

2.     1931 (15 de maio): Encíclica Quadragesimo Anno, do Papa Pio XI (1922-1939), por ocasião dos 40 anos da RN. Tema central: ‘O problema econômico’.

— Destaca as consequências do avanço industrial, afirmando que “o campo mais vaso da caridade é a política”. Denuncia “o imperialismo internacional do dinheiro, que transformou toda a vida econômica em algo horrivelmente duro, implacável e cruel”.

— Propõe um sistema alternativo frente aos blocos totalitários da época (o nazi-fascismo e o comunismo marxista), ou seja um corporativismo cristão, fundado na preocupação e na primazia do bem-comum.

 

3.     1961 (15 de maio): Encíclica Mater et Magistra, do Papa João XXIII (1958-1963), por ocasião dos 70 anos da RN. Tema central: ‘O subdesenvolvimento’.

— A questão social não se reduz à disputa das classes pela apropriação dos meios de produção, mas adquiriu dimensões planetárias. Um abismo separa ‘povos desenvolvidos’ de uma multidão que vive (ou apenas ‘sobrevive’) em condições de inaceitável subdesenvolvimento.

— Detecta os caminhos de um acelerado processo de socialização, o que possibilitará a um número maior de pessoas (inclusive camponeses) ter acesso a níveis de vida mais compatíveis com sua condição humana e cristã.

 

4.     1963 (11 de abril): Encíclica Pacem in Terris, de João XXIII, por ocasião dos 15 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Tema central: ‘A política internacional’.

— A paz mundial depende de uma política solidária a nível internacional, enraizada na verdade, na justiça, na caridade e na libertação.

— O contexto histórico do documento é o embargo econômico de Cuba (1962).

— Outros assuntos abordados: os direitos humanos; o neocolonialismo; a colaboração entre católicos e socialistas, com a célebre distinção entre ‘ideias filosóficas’ e ‘movimentos históricos’.

5.     1967 (26 de março): Encíclica Populorum Progressio, do Papa Paulo VI (1963-1978). Tema central: ‘O desenvolvimento integral das pessoas e Nações’).

— Documento qualificado como “um tratado de humanismo cristão integral”.

— A solução dos problemas sociais modernos dependerá do desenvolvimento integral do ser humano (o ‘ser’ sobre o ‘ter’) e do desenvolvimento solidária da Humanidade.

— Prolonga e aprofunda o capítulo III (Sentido da atividade humana no mundo) da Constituição Gaudium et Spes, do Concílio Vaticano II.

O documento foi recebido com surpresa e indignação em certos setores da sociedade. Assim, o diário financeiro norte-americano: The Wall Street Journal, fala de um ‘marxismo requentado’!

 

6.     1971 (14 de maio): Carta Apostólica Octagesima Adveniens, do Papa Paulo VI, dirigida ao Cardeal Maurice Roy, Presidente da Comissão Pontifícia ‘Justica e Paz’, por ocasião dos 80 anos da RN.

— Documento que evidencia o caráter dinâmico dos ‘ensinamentos sociais’ do mais alto magistério eclesiástico.

— Salienta as ‘novas necessidades’ de um mundo em rápida transformação, fazendo uma acurada análise dos problemas enfrentados no campo sociopolítico, apontando o pluralismo e o indispensável discernimento diante de ideologias e movimentos.

— Expressa um profundo respeito pela consciência pessoal e reconhece a diversidade de situações encontradas nas comunidades humanas.

— Aborda os seguintes questionamentos: Qual é o sentido próprio da DSI? E da posição do cristão frente a determinados sistemas sociais e políticos? Qual atitude a tomar em relação à violência, tida por determinados grupos  como inevitável na luta por uma ordem social mais justa?

 

7.     1981 (14 de setembro): Encíclica Laborem Exercens, do Papa João Paulo II (1978-2005), por ocasião dos 90 anos da RN. Tema central: ‘O trabalho humano como chave da questão social’.

— Uma notável inovação na compreensão da questão social, até então muito centrada na problemática da propriedade.

— O conflito entre capital e trabalho só pode ser superado com o reconhecimento da prioridade do trabalho sobre o capital.

 

8.     1987 (30 de dezembro): Encíclica Sollicitudo Rei Socialis, do Papa João Paulo II, por ocasião dos 20 anos da Populorum Progressio. Tema central: ‘O desenvolvimento humano integral e a realidade das estruturas de pecado’.

— Assinala a incompatibilidade da DSI tanto com o liberalismo capitalista (a exaltação da liberdade leva a humanidade à exacerbação do consumismo hedonista), quanto com o coletivismo marxista (com seu falso pretexto de que o resgate da justiça conduziria à opressão dos direitos de uma autêntica liberdade).

— Na abordagem do desenvolvimento enfatiza a dimensão ética, mostrando que um mundo interdependente só pode funcionar pela solidariedade.

 

9.     1991 (1º de maio): Encíclica Centesimus Annus, do Papa João Paulo II, por ocasião dos 100 anos da RN.

Conteúdo básico: O capítulo I analisa os traços característicos da RN. Em seguida, são apresentadas ‘as coisas novas’ dos anos 90 do século XX. O capítulo III focaliza o ano de 1989, marco da imprevisível mudança política no Leste europeu. Os dois capítulos subsequentes retomam os temas da propriedade privada e da função específica do Estado. O capítulo VI versa sobre a centralidade do ser humano na sociedade.

O Papa conclui afirmando que o anúncio de Cristo revela à pessoa humana todo o seu valor e toda a sua dignidade.

 

4.     Conclusão

Os bispos da América Latina e do Caribe, reunidos na V Conferência Geral, em Aparecida, SP, Brasil, de 13 a 31 de maio de 2007, falando sobre “Uma renovada pastoral social para a promoção humana integral”, escrevem no Documento final (DAp, n.399-400; 403-404): “A verdadeira promoção humana não pode reduzir-se a aspectos particulares: ‘Deve ser integral, isto é, promover todos os homens e o homem todo’, a partir da vida nova em Cristo que transforma a pessoa de tal maneira que a faz sujeito de seu próprio desenvolvimento. (…)

A partir de nossa condição de discípulos e missionários, queremos estimular o Evangelho da vida e da solidariedade, em nossos planos pastorais, à luz da Doutrina Social da Igreja. Além disso, promover caminhos eclesiais mais efetivos, com a preparação e compromisso dos leigos para intervir nos assuntos sociais. (…)

Devem-se elaborar ações concretas que tenham incidência nos Estados para a aprovação de políticas sociais e econômicas que atendam às várias necessidades da população e que conduzam para um desenvolvimento sustentável. Com a ajuda de diferentes instâncias e organizações, a Igreja pode fazer permanente leitura cristã e aproximação pastoral à realidade de nosso Continente, aproveitando o rico patrimônio da Doutrina Social da Igreja. Dessa maneira, terá elementos concretos para exigir dos que têm a responsabilidade de elaborar e aprovar as políticas que afetam nossos povos, que o façam a partir de uma perspectiva ética, solidária e autenticamente humanista. Nesse aspecto, os leigos e as leigas exercem papel fundamental, assumindo tarefas pertinentes na sociedade.

Encorajamos os empresários que dirigem as grandes e médias empresas e os microempresários, os agentes econômicos da gestão produtiva e comercial, tanto da ordem privada quanto comunitária, para serem criadores de riquezas em nossas nações, quando se esforçam para gerar emprego digno, facilitar a democracia e promover a aspiração a uma sociedade mais justa e a uma convivência cidadã com bem-estar e em paz. Igualmente animamos os que não investem seu capital em ações especulativas mas em criar fontes de trabalho, preocupando-se com os trabalhadores, considerando-os , a eles e a suas famílias, a maior riqueza da empresa, que, como cristãos, vivem modestamente por terem feito da austeridade um valor inestimável, que colaboram com os governos na preocupação e conquista do bem comum e se prodigalizam em obras de solidariedade e misericórdia”.

Belo Horizonte, 27 de setembro de 2014,

Festa de São Vicente de Paulo,

frater Henrique Cristiano José Matos, cmm


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